O Google Play Store tinha desde 20 de abril de 2023 um jogo mobile que no mínimo pode ser classificado como de mau gosto. O Slavery Simulator, ou Simulador de Escravidão em português, permite ao jogador viver no papel de um proprietário de pessoas escravizadas.
No gameplay bizarro, é possível trocar, comprar, vender e extrair o lucro do trabalho dos escravos, além de evitar rebeliões e fugas. Além disso, também é possível gerenciar, contratar seguranças e treinar os escravos, além de ser possível atribuir escravos a diferentes empresas para trabalhar e gerar renda.
“Escolha um dos dois objetivos no início do simulador do proprietário de escravos: o Caminho do Tirano ou o Caminho do Libertador. Torne-se um rico proprietário de escravos ou consiga a abolição da escravidão. Tudo está em suas mãos”, dizia a descrição do game.
No simulador, existem 3 tipos de escravos: os trabalhadores, os gladiadores e os escravos de prazer. Cada um apropriado para uma tarefa, sendo que é possível treiná-los para aumentar o nível de renda e maestria.
Assim como um mercado de qualquer outro produto, dentro do jogo o preço das pessoas escravizadas varia de acordo com questões de oferta e demanda.
Em Simulador de Escravidão ainda é possível fazer compras in-game de itens que custam entre R$ 4,99 a R$ 20,99.
Avaliações
Com classificação livre, ou seja, indicado para pessoas de todas as idades, o jogo tinha mais de mil downloads. A avaliação dele no Google Play era de 3,9 estrelas (de 0 a 5) e ele tinha pouco mais de 60 avaliações.
A maioria das avaliações escritas eram positivas e ainda davam algum tipo de críticas de melhoria para os desenvolvedores. Um texto escrito por um usuário identificado como Danilo Moreira Marcomini dizia que o jogo “é bom, porém faltam alguns pontos como adicionar habilidades aos escravos ou sequer nome”.
“Dicas, adicionem pontos de felicidade igual em Pokémon para conseguirmos maior produtividade. Por exemplo, ensinar capoeira, dar acarajé ou bolsa família aumentam os pontos de felicidade, assim o escravo trabalharia mais feliz e produziria mais também”, acrescenta Moreira em seu feedback.
“Simulador excelente. Agora posso ter uma noção de como os meus antepassados administravam os seus negócios”, dizia o comentário de Daniel Alves.
“Ótimo jogo para passar o tempo. Mas acho que faltava mais opções de tortura. Poderiam instalar a opção de açoitar o escravo também. Mas fora isso, o jogo é perfeito”, detalhou Mateus Schizophrenic.
Poucas pessoas deixaram uma estrela e comentaram sobre todas as questões problemáticas do game. “Além de ser uma afronta à história da humanidade, o jogo ainda é bem ruim”, disse Leandro Hipólito Schneider. “É inacreditável que esse tipo conteúdo esteja disponível e acessível para crianças”, afirmava Lucas Lima.
Jogo racista
O Voxel conversou com Higor Ferreira, que é professor e pesquisador da história da Escravidão e África. Ele revela que foi informado sobre a existência do game e que até mesmo o baixou para entender do que se tratava, uma vez que a primeira sensação foi a de completa incredulidade.
Ele comenta que apesar de o jogo oferecer dois caminhos de ação (o do Tirano e Libertador), ambos são muito parecidos porque baseia a jogabilidade na compra, venda e gerenciamento dos escravos. No caso do Tirano, a situação é ainda mais bizarra porque é preciso lutar contra a abolição.
“É um jogo que trata de modo muito leviano um assunto que é fundamental. Afinal, a escravidão colonial é uma verdadeira chaga na história brasileira. O jogo é muito diferente de títulos como Assassin’s Creed que tem a característica de inserir o jogador no cenário sociohistórico, apresentando um pano de fundo complexo e interativo. Jogos históricos costumam explorar as contradições de cada época, e não é esse o caso. O que temos ali é meramente sadismo”, argumenta Ferreira.
O pesquisador critica ainda o fato de tudo no game envolver o fator lucro, tirando de contexto qualquer fator humano que faça o jogador questionar sobre se o que está fazendo é correto ou não. Ferreira exemplifica que a jogabilidade lembra jogos de fazendinha, nos quais o objetivo é meramente o de interagir com a produção de uma zona agrária.
Quanto à natureza do jogo, ele alerta que “o aplicativo passa por cima dos direitos humanos”. “O grande perigo de um jogo como esse é o de naturalizar o fenômeno escravista. O Brasil é o país que absorveu a maior quantidade de cativos na história moderna dentro do mundo colonial americano. Foram mais de 4,8 milhões de africanos escravizados que foram traficados por meio do trajeto Atlântico só em direção ao Brasil. No game não há memória e nem preocupação com esse passado”, ressalta.
Para quem quiser conhecer um pouco da história da escravidão e das resistências negras no ambiente colonial – no contexto brasileiro ou dos demais países das Américas -, o professor Higor Ferreira sugere os HQs Angola Janga e Cumbe (do autor Marcelo D’Salete), o livro Dicionário da Escravidão e Liberdade (Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes) e os filmes Doutor Gama (2021), Django Livre (2012), 12 Anos de Escravidão (2013), Amistad (1997) e a série Raízes (2016).
O que dizem os responsáveis?
A desenvolvedora de Simulador de Escravos é a MagnusGames. Especialista em simuladores, a companhia tem vários outros do gênero que estão disponíveis na Google Play. Dentre esses jogos estão Detective Simulator, Election Politics Simulator e Mafia Offline Killer Simulator.
Na página da MagnusGames é possível verificar que eles já publicaram na loja online de apps mobile outro Simulador de Escravidão. Esta outra versão é de 26 de abril de 2023, tem mais 100 downloads e atualmente está inativa.
Na descrição de Simulador de Escravidão na Google Play, a MagnusGames salienta que “este jogo foi criado para fins de entretenimento. Condenamos a escravidão no mundo real”.
Para saber por que desenvolver um jogo com esta temática, o Voxel entrou em contato com a desenvolvedora. Contudo, até o fechamento da matéria não recebemos um retorno.
Jogo fere as regras do Google?
O Voxel entrou em contato com o Google e a empresa respondeu, por meio de nota, que o aplicativo foi removido hoje do Google Play Store. A empresa pontuou que tem um conjunto de políticas que servem para manter os usuários seguros e que devem ser seguidos por todos os desenvolvedores.
“Não permitimos apps que promovam violência ou incitem ódio contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica, ou que retratem ou promovam violência gratuita ou outras atividades perigosas. Qualquer pessoa que acredite ter encontrado um aplicativo que esteja em desacordo com as nossas regras pode fazer uma denúncia. Quando identificamos uma violação de política, tomamos as ações devidas”, diz o restante da nota do Google.